25.11.2014 | 00h00
Os dados estatísticos são evidentes do abismo entre o nascer um homem ou uma mulher. Nesse sentido, conforme publicação da SIPIA (Sistema de Informação para Infância e Adolescência - SIPIA). Apenas nos primeiros quatro meses de 2012, o módulo Criança e Adolescente do Disque 100 registrou um aumento de 71% das denúncias de violação de direitos humanos contra crianças e adolescentes, em relação ao mesmo período do ano passado. Entre janeiro e abril deste ano, foram 34.142 denúncias contra 19.946 em 2011. Oito em cada dez vítimas são meninas.
A discriminação de gênero contra as mulheres é identificada como uma cultura institucionalizada (imposta, por vezes, até em leis) com "razões" distintas que precisam ser superadas. Para Maria Berenice Dias (A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da lei 11.340/06 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 15):"Ninguém duvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente de responsabilidade do agressor. A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade de se tomar consciência de que a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder que leva a uma relação de dominante e dominado. Essas posturas acabam sendo referendadas pelo Estado. Daí o absoluto descaso de que sempre foi alvo a violência doméstica".
Conforme relatório do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), as mulheres realizam 66% do trabalho do planeta, mas só recebem 10% da renda e são donas de apenas de 1% das propriedades mundiais.
Onde se encontra as bases dessa cultura histórica? Pois bem, no modelo de Aristóteles, a fêmea era, digamos assim, um macho mutilado. Argumentava-se que a fêmea fornecia o material. Já o macho, a moldura (AGONITO, Rosemary. History of ideas on woman. New York:Paragon, 1977, p. 46). Enquanto a matéria vem da fêmea, a alma vem do homem. Este pensador escreveu que o conhecimento racional era a mais alta conquista humana, e assim, os homens, seriam superiores e mais divinos que as mulheres descritas como monstros desviados do tipo genérico humano, emocionais e subjetivas. Nesse mundo, há patente caracterização dos dualismos hierarquizados e polarizados, com clara dominação de um lado sobre o outro. Assim, a Alma tem domínio sobre o Corpo; a Razão sobre a Emoção; Consequentemente, do masculino sobre o feminino.
Na Alexandria, no século I d.C., Filon, filósofo helenista, lançou raízes argumentativas e ideológicas para a subordinação das mulheres no mundo ocidental. Para isso, utilizou-se das concepções de Platão, que entendia ter a mulher alma inferior e pouca racionalidade, vertendo-lhe os adjetivos de insensata, sensual e carnal, cheia de vaidade e cobiça, "apesar de ter sido criada a partir do homem".Jean de Marconville, em 1564, invocou os gregos, os romanos, os textos bíblicos, os padres da Igreja para demonstrar a maldade das mulheres. Segundo ele, Adão, "(...) o mais dotado de todas as perfeições que todos os outros homens, foi entretanto vencido no primeiro assalto que lhe fez sua mulher". Ainda assegura que as mulheres não têm aptidões "(...) para manejar e conduzir coisas grandes e difíceis como costumes, religião, república e família, pois parecem ter sido feitas mais para a volúpia e o ócio que para tratar negócios de importância" (MARCONVILLE, J. de. De la bonté et de la mauvaiseté des femmes - 1564. Paris: Côté-femmes, 1991. P. 97-101)
Em igual sentido, Proudhon (apudGROULT, B. Cette mâle assurance. Paris: Albin Michel, 1993:96-97), o "pai do anarquismo moderno", explicitou seis casos em que o marido poderia matar sua mulher, entre eles "a insubmissão obstinada, o impudor e o adultério", e acrescenta: "Uma mulher que usa sua inteligência torna-se feia, louca, (...) a mulher que se afasta de seu sexo, não somente perde as graças que a natureza lhe deu (...) mas recai no estado de fêmea, faladeira, sem pudor, preguiçosa, suja, pérfida, agente de devassidão, envenenadora pública, uma peste para sua família e para a sociedade". Nietzsche (apud GROULT, 1993:102): "O homem inteligente deve considerar a mulher como uma propriedade, um bem conservado sob chave, um ser feito para a domesticidade e que só chega à sua perfeição em situação subalterna".
Quando falamos na discriminação contra a mulher, dentro do perfil de uma hierarquia de desvalor consagrada ao público feminino, estamos diante de um processo histórico. Assim, compreende-se as relações de gênero como "dominação simbólica", exatamente por isso Chartier dirá que essa dominação inscreve-se nas práticas e nos fatos, organizando a realidade e o cotidiano da sociedade e é sempre construída pelo discurso que a cria e legitima. Portanto, para a cultura do gênero, o essencial não é compreender o masculino e o feminino, em sua definição biológica, mas sim, a configuração cultural histórica que enunciam e representam o "natural", na pretensão de igualar o biológico ao histórico,na divisão social, dos papéis e das funções. (Nesse sentido, CHARTIER, Roger Chartier. Diferença entre os sexos e dominação simbólica. Cadernos Pagu, v. 4, publicação do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero, Campinas, 1995, p. 40).
Vencendo a história da subjugação, devemos compreender que os deveres e direitos são comuns e assim deveriam prescrever orientações de equidade. Isso jamais significa retirar a importância do feminino em sua acepção biológica. A amamentação, a reprodução e a presença materna são importantes inclusive para a saúde mais estável, destacando-se, pois, à formação de uma estrutura emocional equilibrada aos filhos. De igual forma, não se pretende retirar a importância do masculino, no equivalente da proteção gerada pela sua maior força física, geneticamente estabelecida, bem como quanto à paternidade e à convivência familiar do pai no seio da família, com deveres domésticos de cuidado e compartilhamentos tão necessários. Homens e mulheres são complementares e essenciais ao futuro da humanidade.
Vale-nos contudo entender as diferenças entre a bandeira da Identidade de Gênero do público LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) da bandeira de Superação do contexto de gênero das demandas inclusivas do público feminino.Todos, entretanto, lutam pela superação de suas vulnerabilidades nos horizontes sociais.
Pois bem.Importa para o público LGBTTT que sejam estabelecidos diversos gêneros sociais (identidade não mais de sexo e sim de gênero), considerando, pois, suas vertentes distintas do individual para o coletivo (preferências volitivas). É exatamente a partir da orientação de uma sexualidade ou vontade, que se pretende uma diretriz de ambiência coletiva em políticas públicas.Já para a análise da cultura de gênero em desfavor do público feminino, vê-se que a discriminação de gênero parte de valores discriminatórios coletivamente impingidos às mulheres (CAMPOS, Amini Haddad. CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. Ed. Juruá: Curitiba. 2008), independente da vontade destas.
Portanto, a mudança dessa cultura, pela consagração de uma igual dignidade humana, resulta na necessidade de se prescrever políticas públicas coletivas e de Estado à superação dessa barreira secularmente imposta ao feminino.
Nesta segunda parte, identificamos, pois, os espaços reais que alicerçaram as diferenças de oportunidades e de desenvolvimento ao público masculino e ao público feminino. Continuemos, em uma terceira parte, na crítica persuasiva necessária à história de um novo amanhã.
Amini Haddad é diretora da Secretaria de Gênero da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB e Juíza de Direito/TJ/MT. Email: amini@terra.com.br
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