24.11.2025 | 14h02
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Sabe quando você entra na sua casa e desconhece o sofá? Me perguntou há alguns anos uma analisanda. Ela descrevia a angústia. Foi a descrição mais precisa que ouvi para o que a maior parte dos analisandos chama, sem muita inventividade, de aperto no peito. Tinha recebido uma notícia duríssima sobre a própria saúde, voltava da consulta médica com os exames debaixo do braço.
Abriu a porta, apoiou os envelopes no sofá e quando percebeu o branco dos papeis encostado no amarelo do móvel - o amarelo do móvel, nunca mais esqueci - teve a sensação de estar vendo aquele sofá pela primeira vez. Ficou ali, em pé, diante do móvel, imóvel. Nenhuma reação a não ser a de misturar o estranhamento com o “aperto no peito". Olhou para os quadros, um “Seja marginal, seja herói” que lhe pareceu tão fora do tom, se deu conta do prato de bolo sobre a mesa e pensou que essa palavra bolo chega a ser ridícula. Ao lado do prato, um vaso de flores com 3 girassóis olhando
pra baixo, uma ou outra pétala caídas grosseiramente próximas aos farelos. Nem lembrava por que tinha saído do supermercado na sexta-feira anterior segurando um ramalhete e chegou à conclusão de que talvez girassóis fossem as flores mais anti estéticas do mundo.
Nesse dia, reli Louvação para uma cor de Adélia Prado. Vocês lembram desse? Diz assim: O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa, o amarelo durável. Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel. Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo. Este, dentro, o minúsculo. Da negritude das vísceras cegas, o amarelo e quente, o minúsculo ponto, o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas a pura luz de seu nome, a cor tropicordiosa. Acende o cio, é uma flauta encantada, um oboé em Bach.
O amarelo engendra. Como que uma cor é tropicordiosa um dia e no outro faz enfeiar móveis e flores? De vez em quando
lembro dessa sessão. Sempre lembro de várias sessões. Em análise, coisas grandes, bem grandes, são ditas. Sobre si, claro, mas por vezes, sai uma fala meio universal. Porque a fala, assim como o amarelo de Adélia, engendra. Cria sentidos. Eu amo amarelo. Não há quem me convença de que os M&Ms das outras cores tenham o mesmo gosto. O amarelo é claramente superior.
Amo amarelo, Mas tenho horror a girassóis. Certezas bestas que a gente coleciona. É também nessas besteirinhas
que vamos montando o que parece o seguro da vida. Quando vem uma chacoalhada, como a que viveu minha analisanda, elas são as primeiras a cair. E um já não se sabe dono do próprio sofá. É bem nessa hora que o novo se engendra. É bem nessa horinha que dá pra reinventar a vida. A dor pode ser "uma flauta encantada, um oboé em Bach”. Que seja. Boa semana, queridos.
Roberta D'Albuquerque é psicanalista, atende em seu consultório em São Paulo e escreve semanalmente no Gazeta Digital e em outros 17 jornais e revistas do Brasil, EUA e Canadá. E-mail: contato@robertadalbuquerque.com.br
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