Apito é substantivo e verbo

Sabia que os semáforos de São Paulo não são à prova d 'água? Juro a tu. Bem, se perguntar ao Detran, eles vão dizer que “não, imagina, inclusive estão classificados como IP65, totalmente protegidos contra a entrada de poeira e jatos de água de qualquer direção". Quem sou eu pra duvidar do Detran. Deus me livre. Agora, lá no bairro, choveu, eles param. E não precisa ser tempestade não, pode ser um chuvisquinho besta, um morador desavisado lavando a janela no décimo segundo andar, um passarinho que exagerou no almoço. Sei lá. Se molhar, para. Juro a tu.

Aí ontem, tava lá o agente de trânsito dando conta da esquina da Angélica com a Higienópolis. Impressionante de ver a segurança do cara. Numa postura. Silvo breve pra cá, silvo longo pra cá. E o povo obedecendo. Se brincar, mais ainda do que obedecem ao próprio semáforo. Quando estudei para o exame do Detran, há uns 30 anos atrás, lá em Garanhuns, me pegava muito o negócio do silvo. Acho que eu não me dava conta de que junto ao ritmo dos apitos viriam os braços apontando
que pare, reduza ou siga. Tinha um medo danado de não entender a ordem, tomar multa, bater o carro, passar por cima do homem, matar e morrer por causa de uma chuva. Embora, pelo que eu me lembre, mesmo na chuva os semáforos de Garanhuns funcionavam. E olha que Garanhuns é a terra da garoa. Tá na música de Luiz Gonzaga. Até hoje sei que um silvo breve é igual a siga, dois silvos breves, pare e um silvo longo, reduza a velocidade. É assim, né?

Depois tinha a coisa da palavra. Silvo é uma palavra muito específica da cartilha do Detran, né? Ninguém fala do silvo longo que o mestre de bateria faz quando o povo começa a tocar, ou o curto do juiz de futebol. Apitou o fim da partida, é o que dizem. Painho tinha um amigo que se chamava Silvino, tinha o Silvio Santos também. Eu imaginava esses 3 mosqueteiros, o Silvino, Silvio e Silvo, um por todos e todos por um. Igualzinho imagino a dupla Frente fria e Costas quentes, toda vez que
um é mencionado, penso no outro.

Tudo isso pra dizer que ontem, enquanto o agente de trânsito soprava seus silvos, os pássaros daquela quadra respondiam. Ele apitava e eles piavam. Aquilo foi ficando uma coisa tão grande, tão grande, que os carros resolveram não buzinar, as pessoas resolveram não falar, as árvores resolveram brilhar mais verde, os pedestres deram de olhar pra cima, os pássaros notaram, deram de voar mais graciosos. Por um minutinho, a esquina da Angélica com a Higienópolis virou o lugar mais comovente do mundo todo. A gente atravessou e se viu agradecido pela chuva, pelo IP65 que não presta pra nada e pela vida toda. Sei lá. Foi bonito. Boa semana pra vocês, queridos.

Roberta D'Albuquerque é psicanalista, atende em seu consultório em São Paulo e escreve semanalmente no Gazeta Digital e em outros 17 jornais e revistas do Brasil, EUA e Canadá. E-mail: contato@robertadalbuquerque.com.br

Coluna semanal atualizada às segundas-feiras