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Cuiabá, Sexta-feira 26/09/2025

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26.09.2025 | 13h04

Nem toda morte choca. Algumas rendem aplausos.

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Christiany Fonseca

Divulgação

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O que acontece com uma sociedade quando o luto precisa ser filtrado por convicções políticas? Quando a brutalidade não gera mais comoção, mas torcida? Quando o assassinato do “inimigo” é celebrado como um triunfo e a morte do “aliado” é usada como palanque? É nesse território que deixamos de debater ideias e começamos a perder a condição mais básica da vida em comum: a capacidade de reconhecer o humano no outro.


Foi isso que os assassinatos de Charlie Kirk, nos Estados Unidos, e de Marielle Franco, no Brasil, escancararam, não apenas como crimes bárbaros, mas como espelhos de uma cultura política que perdeu o eixo moral.

 

Charlie Kirk era ativista conservador e um dos fundadores da Turning Point USA. Foi morto a tiros durante um evento universitário. A resposta de setores progressistas? Silêncio, indiferença e até comemorações explícitas como a do neurocirurgião Ricardo Barbosa, que escreveu: “Um salve a este companheiro de mira impecável. Coluna cervical.” A frase é real. Pública. E doentia.

 

Marielle Franco era vereadora, mulher negra, favelada e defensora de direitos humanos. Foi executada com quatro tiros na cabeça em pleno centro do Rio. A reação de parte da direita incluiu ofensas à sua memória, disseminação de teorias conspiratórias e tentativas de rebaixar sua trajetória. O deputado Nikolas Ferreira, por exemplo, disse: “Ela não é uma pessoa que era flor que se cheire. Não é porque morreu que virou santa.”


Essas reações não são apenas episódios lamentáveis. Elas são sintomas. Sintomas de uma sociedade que passou a condicionar o valor da vida ao alinhamento ideológico. Onde a repulsa diante da violência virou um gesto facultativo, e seletivo.

 

A psicologia social já oferece pistas sobre esse colapso ético. O psicólogo Jonathan Haidt chama isso de “tribalismo moral”: um mecanismo de sobrevivência que nos leva a proteger nosso grupo e atacar quem está fora dele, mesmo que isso custe a renúncia à compaixão. Para Haidt, a moralidade não evoluiu para buscar a justiça universal, mas para manter a lealdade interna e justificar hostilidades externas. O certo e o errado, nesse contexto, não são princípios, são estratégias.


A cientista política Lilliana Mason complementa esse diagnóstico mostrando como a polarização extrema corrói o próprio juízo moral. Quanto mais nos identificamos com um grupo, mais tendemos a desumanizar o adversário, não como alguém que pensa diferente, mas como alguém que não merece sequer consideração. Quando isso se instala, o debate desaparece e sobra apenas confronto. Não se discute ideias, se escolhe quem pode ou não ser tratado como gente.

 

Além disso, o ambiente digital potencializa esse colapso. O anonimato parcial, a lógica da performance e a cultura do engajamento a qualquer custo criam um espaço fértil para a desumanização do outro. As redes sociais estimulam um comportamento conhecido como “desinibição on-line”, em que as pessoas se sentem autorizadas a dizer o que não diriam no mundo físico. A brutalidade vira curtida. O sarcasmo, aplauso. E a morte do outro, se for inimigo ideológico, pode até virar meme.


Nesse cenário, a polarização deixa de ser disputa política. Ela se torna um campo de desumanização. A morte, que deveria ser um limite comum, passou a ser relativizada por alinhamento ideológico. A empatia, que deveria ser universal, se tornou partidarizada. A dor, que deveria nos unir, virou critério de fidelidade. O resultado é esse: a civilização começa a falhar não quando há conflito, mas quando a barbárie deixa de nos chocar.

 

E é justamente aí que reside o perigo. Porque, quando a capacidade de se indignar depende da camiseta política de quem morreu, o problema não está mais no crime, está em quem o observa. Em nós.


Não se trata de forçar simetrias ou igualar contextos distintos. Trata-se de algo mais profundo: o que significa, afinal, perder a capacidade de se chocar com a barbárie? Quando foi que passamos a medir a gravidade de uma execução pela biografia da vítima? Quando a morte precisa de legenda, a civilização já falhou.


É possível — e urgente — condenar o assassinato do adversário sem trair as próprias convicções. É possível combater ideias sem matar pessoas. É possível ter lado político sem perder o senso de justiça. Porque, quando o sangue derramado precisa de filtro ideológico para gerar empatia, o que apodreceu não foi a política. Foi o nosso senso de humanidade. E se a morte do outro vira piada, talvez já tenha gente demais rindo do próprio fim. 

 

 

Christiany Fonseca é cientista política, doutora em sociologia e professora do Instituto Federal de Mato Grosso

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