entrevista da semana 06.11.2022 | 14h31

yuri@gazetadigital.com.br
João Vieira
No último mês, cuiabanos foram surpreendidos com uma possível prática de garimpagem ilegal no coração do Centro Histórico de Cuiabá. A ação ilegal serviu para acalorar o debate sobre o uso, fomento e vivência da região, que foi valorizada pelo público jovem com atividades na Praça da Mandioca e seus bares.
Mas, fiscalização da própria Prefeitura de Cuiabá fez com que o comércio se retraísse, proibindo som alto, cadeiras e meses pela rua do meio. Depois de todos esses anos vivendo mais uma ‘queda’, a região se tornou sinal de abandono em vários pontos.
Casarões históricos estão caindo e a história sendo esquecida. O historiador Suelme Evangelista Fernandes conversou com a reportagem do
sobre essa fase que vive o Centro Histórico. Destacou a importância da região não só para a história regional, mas também para a humanidade.
Explicou ainda o processo de marginalização da região e o perigo da falta de educação patrimonial e ocupação dos espaços. Leia a entrevista completa abaixo.
GD - Centro Histórico de Cuiabá tem passado por momentos difíceis. O senhor acredita que a preservação é a melhor forma de manter a história e a identidade do nosso povo?
SEF - Não há dúvidas. O Centro Histórico traz em si partes, fragmentos, retalhos do que venha a ser o desenvolvimento urbano também da história de Portugal na América Central. A partir do momento que o centro de Cuiabá setecentista é ocupado no século 18, a cidade já comportava na sua experiência social grupos africanos.
Esse patrimônio também faz parte da África. Além disso, o espaço já era ocupado pelos povos indígenas, que foram os primeiros habitantes da região. Então, todo o acervo patrimonial passa a ser de interesse da humanidade.
Não podemos pensar apenas pelo patrimônio tombado como de interesse regional, mas de nacional e mundial desde a ocupação portuguesa. A gente fala de vestígios, documentos, monumentos e história da humanidade. Muita coisa pode ser descoberta ainda nestas paredes desde a colonização. São fragmentos do passado que podem revelar muito sobre quem somos.
Casarão / Centro Histórico / Denuncia - Rua 7 de Setembro / Abandono / Obra Parada / Gráfica do Pepe
GD - Em várias capitais, o Centro Histórico é fomentado pelo turismo, pela cultura e lazer. Em Cuiabá, apesar da riqueza cultural, a questão parece não avançar. Na visão do senhor, que também já foi gestor público, o que falta para a área se tornar um atrativo?
SEF – Processo de educação patrimonial. Não adianta valorizar e achar que ele tem que ficar em pé, sem dar nenhuma utilidade para ele. Em Cuiabá, cerca de 30% desses imóveis estão desocupados. A casa de Bem Bem hoje abriga o Instituto Flauta Mágica.
As crianças que vivem ali vão criar uma relação afetiva e educativa com os imóveis, que podem ser de uso público ou privado também. Dar significado de utilidade. É preciso uma política de desapropriação, de moradia de interesse social – o Maranhão fez isso, política de IPTU. Enfim, política completa de ocupação da área.
GD – Quando o senhor acredita que a área foi ‘abandonada’ pela cuiabania?
SEF - Na leva de ocupação ainda nas décadas de 1960 e 1970, o cuiabano passou a ter vergonha, complexo de inferioridade com relação ao patrimônio que tinha. Os que chegavam tinham ainda mais, já que não tinham conhecimento e relação histórica com eles.
Então, esse processo de depreciação, desconstrução e depredação do patrimônio tem a ver com o processo de ocupação recente de Mato Grosso. Parte da história do Estado se deu com a colonização dessas casas antigas há mais de 200, 300 anos.
Esse Estado não é uma invenção da ocupação dos produtores de soja – que aconteceu nas décadas de 1970 e 1980. Já existia produção no Centro da América do Sul antes mesmo da chegada dos colonos. Então, a consciência política é necessária e o poder público deve exergar isso como um atrativo, como um bônus para desenvolvimento de prática sustentável de turismo e moradia social. Fundamental pensar como patrimônio não local, mas de forma global.
GD - Em uma semana, a Prefeitura de Cuiabá descobriu uma possível prática de garimpo ilegal próximo à Praça da Mandioca. A destruição do solo já aconteceu em ao menos 4 casarões da rua. Como essa obra pode impactar em questões históricas do local?
SEF – Muita polêmica em relação a isso. Proprietário alega que é processo de investimento na restauração dos imóveis, que não é garimpagem. Todo e qualquer movimento de terra é preciso passar por um laudo arqueológico, para saber se o movimento não tenha achados arqueológicos.
Pesquisadores demonstraram que no subsolo existe patrimônio material tão rico quanto os que se vê nos imóveis. É através da arqueologia que a gente pode ter várias descobertas sobre as formas de viver e conhecer o cotidiano do passado. Acho estapafúrdio pensar em prática de garimpo na região. Quando os projetos exploratórios saíram daqui, era um sinal de que já não tinha mais ouro. Pode ter, pode, mas não nessa dimensão que justifique a garimpagem.
GD - Em geral, o senhor acredita que o povo cuiabano valoriza a sua história e tem cuidado como deve do seu patrimônio? Temos a consciência necessária para preservar o que foi vivido?
SEF - Falta consciência. Especialmente nos proprietários dos imóveis. A maioria deles são privados. O poder público fiscaliza, mas muitos são privados e estão envolvidos em caso de briga de família por herança, que em vez de pensar em uma destinação apropriada, social, ficam na especulação, esperando cair para construir estacionamento.
Cuiabá tem um monte de estacionamento construído em lugar de casarão antigo. Percebe-se também que as pessoas que moravam nesses locais não têm memória afetiva para cuidar. Esperam cair com as chuvas para vender o terreno.
Depois da década de 70 e 80, sofremos com a construção de novas cidades com o complexo de inferioridade e o que era importante para nós passou a ser vergonha, como a língua, o modo de viver, com imóveis aconteceu o mesmo. Só vamos reverter isso com medida dura do poder público e educação patrimonial.
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