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Cuiabá, Domingo 14/09/2025

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'meu avô nunca me enxergou' 14.09.2025 | 12h52

Torturado e cego na ditadura, 'Seu Fiuza' tem vida contada em documentário da neta

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Ricardo Cruz

Ricardo Cruz

Cabelos brancos, aparência frágil, óculos escuros e voz calma. Sentado em uma cadeira na sala de estar da casa da família, no bairro do Porto, em Cuiabá, o servidor público aposentado Rubens Pinto Fiúza, 84, fala com sorriso fácil sobre os tempos da juventude, de quando era moço. Porém, não esconde a indignação quando fica sabendo que ainda hoje, em 2025, tem gente que pede a volta da ditadura. Ele viveu e sentiu na pele o que foram os anos sob regime militar, assim deseja que nunca mais o país passe por cenário semelhante.

 

Preso e torturado nos anos de chumbo, o mineiro que constituiu família em Mato Grosso nunca escondeu dos parentes os horrores do regime militar. Com sequelas físicas, o idoso fez questão de contar a todos, em especial a neta, Lívia Fiúza, 22, sobre o que passou nos anos 70. Sob o olhar atento da jovem, a história vai virar documentário para retratar este e outros fatos vividos pelo avô. “Eu era destemido na época. Agradeço todos os dias por estar vivo, porque o que eu vivi não foi brincadeira”, diz Rubens à reportagem do .

 

Há 46 anos, na manhã do dia 9 de maio de 1979, Rubens saía de casa para comprar pão e leite para os filhos pequenos, quando foi surpreendido e sequestrado pelo órgão da repressão da ditadura. “Fiuza foi aprisionado. Nova Era o acusa de ser agitador”, dizia a manchete do jornal Diário de Cuiabá, no dia seguinte. O impresso informava que o Departamento de Ordem Pública e Social de Mato Grosso (DOPS) mantinha “preso e incomunicável” o técnico agrícola e funcionário da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Mato Grosso (Emater-MT), Rubens Pinto Fiuza. O motivo: acusado de ser autor intelectual de uma greve de motoristas de coletivos da empresa Nova Era, marcada para o dia 10, mas nem chegou a ocorrer.

 

“Rubens nega ser autor da greve, mas admitiu ter datilografado o manifesto a pedido dos motoristas. O advogado da empresa Nova Era, João de Campos Paulo, informou ter entregado ao DOPS mais de 10 depoimentos em fitas gravadas, dando conta de que o acusado estava incitando o movimento grevista, que se baseia em 10 itens reivindicatórios. Fiuza além de ser colaborador em diversos jornais da capital, é funcionário público estadual, foi candidato a vereador pela Arena em 1976. Ele é acusado pela empresa de transporte coletivo de Cuiabá de estar incitando movimento grevista a mando de outro grupo concorrente que pretende quebrar o monopólio da Nova Era”, diz trecho da matéria veiculada na época.

Arquivo Público de Mato Grosso / Lívia Fiúza

Rubens Pinto Fiúza

 

Liberado 24 horas depois, a matéria ainda dá conta de que Fiuza estava com diversos ferimentos pelo corpo, com hematomas nas pernas, braços e no rosto. Contudo, outra sequela não descrita é talvez a mais evidente até hoje: a cegueira. Rubens narra que foi agredido de tal forma que perdeu a visão total dos dois olhos.

 

“No dia do sequestro, eu estava subindo a rua e vi que tinha 3 camaradas na frente de um Fusca, eles me pegaram. Apareceu um cara que viu a situação e até tentou me ajudar, mas apanhou também. Diante disso foi juntando gente e resolveram me enfiar no carro. Eu creio que queriam me jogar do Portão do Inferno, mas foram no porão do DOPS e me deixaram lá com um guarda e disseram que eu estava incomunicável. Quando me soltaram eu estava todo ensanguentado, me bateram muito”, relembra Fiuza.

 

A repercussão do caso, ainda que tímida diante das censuras e barreiras impostas à imprensa, reverberou na capital. Ao tomar conhecimento da prisão de Rubens e das torturas sofridas, o então deputado Isaias Rezende, vice-líder do MDB na Assembleia Legislativa, disse que o incidente era um desrespeito total aos direitos humanos. “'Será que para prender precisa bater? Por que é que toda vez que a polícia prende tem que tratar o ser humano como um animal?', indagou o deputado”, cita a reportagem na mesma edição.

 

Já no dia 11, o impresso noticiava que uma sindicância seria instaurada para apurar as denuncias de tortura contra Fiuza. O então secretário de Segurança Pública, coronel Paulo Santa Rita, se viu pressionado pelo sindicato dos jornalistas profissionais do Estado e pelo diretório municipal da Arena. “Segundo o delegado Joaquim Ramalho, Fiuza não será enquadrado na lei de Segurança Nacional, artigo 36, porque a greve não chegou a realizar-se. Adiantou, no entanto, que no máximo, o acusado sofreria uma pena leve”, menciona outro recorte de jornal.

 

Em comunicado à época, a empresa citou que a prisão foi parte das “providências” tomadas contra o “agitador de massa”.

 

Jornais da época dão conta de que a Nova Era seria detentora do monopólio do transporte na capital e existia movimentação até na Câmara de Vereadores para que a exclusividade fosse rompida. Cerca de 60% dos parlamentares era a favor de abertura para novas empresas explorarem o transporte público. Em uma das matérias da época intitulada "Vereadores compram briga do transporte coletivo" a qualidade dos serviços é relatada.

 

"Ônibus colocados a disposição são tão velhos que se quebram na metade do caminho. Quem os utiliza tem a impressão que se chocam durante o trajeto. Outro probleminha terrível é a falta de harmonia dos horários de chegada e saída dos ônibus que circulam na mesma linha. É preciso esperar longos minutos debaixo do sol escaldante ou enfrentando grossa chuva. Houve também quem já esperou mais de uma hora. [...] Certo dia um motorista da empresa dizia que estava com seu veículo de trabalho na oficina há mais de uma semana e que nada haviam feito para colocá-lo em funcionamento. [...] Exclamações de protestos sempre surgem, mas não são ouvidas. É justamente porque não existe em Cuiabá outra empresa de ônibus que as pessoas se calam e continuam utilizando este meio", diz trecho.

 

Histórico de luta 

Descendente de família portuguesa com renda baseada no plantio do café, Rubens nasceu em 1940, em Dores do Indaiá, interior de Minas Gerais. Com gosto pela leitura desde cedo, deixou de lado a vida na fazenda para estudar e fazer cursos técnicos em busca de formação.

 

Ele conta que em março de 1964 participou de uma greve por reivindicação de salário aos trabalhadores da epidemiologia em Minas, no auge de uma epidemia de malária, já que à época atuava na área da saúde. Por conta de perseguições, teve de se mudar para Mato Grosso. Já no Centro-Oeste, trabalhou em prol da regularização fundiária e ajudou na criação de vários bairros e associação de moradores. Quando algo o incomodava, mobilizava as pessoas e fazia abaixo assinado para que, por meio de ações coletivas, fossem tomadas providências.

 

Foi na cidade de Rosário Oeste (128 km ao norte de Cuiabá) que conheceu Anete Ferreira Fiuza, sua esposa e mãe de seus dois filhos. Por lá também causou “confusão”, como costuma brincar. O inconformismo com aquilo que lhe tirava da zona de conforto, levou a mudar-se para a capital com a família, após retaliações por fazer cobranças publicamente pelo fato da esposa ter sido ferida por um boi solto na rua.

 

Técnico agrícola, foi funcionário público por muitos anos, nunca deixando de contribuir para jornais impressos com seus textos.

 

'Ditadura Nunca Mais' 

Agora, a história será eternizada pelas lentes da estudante de cinema e audiovisual na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e neta de Rubens, Livia Fiuza. Ao , ela narra que o interesse pela história do avô começou muito cedo, quando questionava o motivo dele ser cego. A mãe de Lívia contou a ela que tinha apenas 12 anos quando o pai foi sequestrado, o que a fez desenvolver um trauma e aversão a discursos de retomada da ditadura. As feridas carregadas por Rubens atingiram também a família.

 

Ricardo Cruz

rubens pinto fiúza

 

“Meu avô nunca me enxergou, quando eu nasci ele já não via mais. Mas, além disso, nossa família teve problemas de exclusão social, porque eram taxados como ‘a família de comunistas’. As pessoas tinham medo de se aproximar e serem presas também. Por conta disso, meu avô perdeu o emprego. Minha avó, que era professora do Estado, teve que trabalhar em dobro. Anos depois, eles abriram um sebo e virou uma fonte de renda para eles”, conta.

 

Mesmo décadas após o sequestro, Rubens relata dificuldades e sequelas físicas pelo ocorrido.

 

“Meus filhos e o advogado fizeram um esforço e conseguiram anistia pra mim. Não foi fácil, mas pegamos atestados de tudo que precisava, com médicos especializados, exames, até conseguir. [...] A dentista que me acompanha notou que meus ossos da face ficaram danificados, tortos, fiquei com a fala difícil. Agora estou fazendo fonoaudióloga e está melhorando minha situação, uma dor de cabeça que eu tinha também está melhorando”, conta.

 

Ricardo Cruz

rubens pinto fiúza

 

Lívia cita que muitas pessoas não sabem da gravidade da ditadura em Cuiabá e pela proximidade do tema desejou contar a história do avô. Entrar para o curso de cinema na UFMT foi a “virada de chave” para entender que precisava fazer um filme sobre isso.

 

Ao saber da ideia, o avô ficou empolgado. Apesar dos traumas, tenta lidar com o ocorrido como algo de seu passado que o trouxe aonde está hoje. Anistiado, recebe um auxílio do governo, mas estranha o fato de também os militares e seus descendentes receberem recursos, mesmo diante dos crimes que cometeram no passado.

 

Questionada pela reportagem do sobre o que sente quando vê na atualidade  cidadãos que propagam a volta do regime militar, Lívia desabafa e relata que sente tristeza, mas crê que as gerações futuras não vão coadunar com esse tipo de discurso.

 

“Dói muito ver gente falando esse absurdo. Falar sobre o retorno da ditadura é não entender ou conhecer realmente o que aconteceu. É muito triste, desrespeitoso, sádico, cruel e eu vejo como um retrocesso muito grande na nossa sociedade. Mas pelo menos meu avô ainda está aqui pra mostrar essa esperança que ele mantém, para que o mundo viva e acredite que as pessoas podem ser melhores do que isso, refletir sobre esses posicionamentos e entender que são agressivos e inconstitucionais”, conscientiza.

 

Já o avô Rubens dispara que sente até "um arrepio quando" incitam o assunto, porém, espera que, com educação e discernimento, as pessoas tenham real noção do que foi o período e não desejem que se instale novamente algo semelhante.

 

Ricardo Cruz

rubens pinto fiúza

 

"O ser humano é superficial, tem dificuldade de aprofundamento, de conhecimento. É preciso que tenha pessoas com coragem para falar a verdade. Isso aqui não é partido A, B ou C, é Brasil. Com toda dificuldade da democracia ela é mil vezes melhor que as ditaduras. É nela que conseguimos todo o progresso, desenvolvimento, harmonia, justiça social. Ditadura é interesse de pessoas malévolas que não respeitam direitos alheios. Democracia nao é comunismo, não é nada disso, devemos estudar profundamente e entender o que é democracia e ditadura", conclui.

 

Intitulado "Seu Fiuza", a previsão de lançamento do documentário é para fim desde ano.

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