ato por 'calote' completa 30 ANOS 05.07.2025 | 18h00
mariana.lenz@gazetadigital.com.br
Acervo pessoal Jonas Correa Neto
Foi na madrugada do dia 5 de julho de 1995, há exatos 30 anos, que o artista plástico Jonas Corrêa Neto, 61, chegava ao antigo Fórum de Cuiabá com uma lata de tinta preta e a despejava sobre a estátua da Justiça, a deusa Themis. O protesto pelo não pagamento integral do valor acordado para a confecção da obra vai virar documentário e com lançamento previsto para este ano.
A diretora e produtora da película, a cineasta Pollyanna Corrêa, 34, filha de Jonas, esteve em Cuiabá no último dia 30 de maio para as filmagens e contou ao que sentiu a necessidade de documentar o ato marcante na carreira do pai, mas que também a história da família do artista.
“Eu tinha 4 anos quando aconteceu esse fato e por mais que eu estava no carro enquanto meu pai jogava a tinta, sofrendo o impacto ao longo desses 30 anos, eu não me lembro de tudo, eu era criança. Eu fui saber a história toda só agora. Eu li o processo e tomei dimensão de quão grave e abusivo foi tudo aquilo. Mesmo tendo crescido vendo as notícias, os jornais, eu precisei crescer para entender”, conta.
Segundo Pollyana, o documentário também servirá para curar feridas do passado e compreender parte de sua história de vida, já que a família teve que se mudar de Cuiabá por causa das ameaças e perseguições. “Não é um documentário legal que a gente faz e conta uma história só boa. Mexeu muito com o nosso psicológico. Em muitos momentos eu chorei, houve pessoas que eu entrevistei chorando. Talvez seja um sinal de esperança e de conseguir trazer a justiça de volta ao público lá fora”.
A escultura e o protesto
Ao , Jonas conta que a obra foi encomendada em 1993 pelos magistrados Aparecido Chagas e Tadeu Cury, que na época ocupavam posições de direção no Fórum. Além da Themis, também foram solicitadas réplicas de 20 centímetros para homenageados que estariam no dia da inauguração do novo prédio. O valor combinado foi equivalente a R$ 10 mil na época.
O escultor relata que o pagamento seria feito ao longo da execução do projeto e totalmente quitado até a entrega final. No entanto, segundo ele, até o dia da inauguração do Fórum havia recebido R$ 8 mil, com atrasos. Apesar disso, a escultura de 4,5 metros de altura e cerca de 4 toneladas foi instalada em setembro de 1994, sendo a principal atração da inauguração, ocorrida em novembro do mesmo ano.
Porém, diante do valor pendente, o artista não entregou as miniaturas e, com isso, começou a saga de idas e vindas em busca de receber o acordado. Por meses o artista tentou contato com os magistrados, sem respostas.
“Eu passei sem receber novembro, dezembro, janeiro, tentando reaver o que faltava. Me mandavam ir atrás de empresários para receber, mas só recebia recusas. Como a obra já tinha sido entregue, a sensação era de que ninguém tinha mais obrigação. Já estava pronta, acabada, entregue e eu entrei num limbo. Em março de 95 foi marcada uma reunião para dia 5 de julho para resolver a situação, só que no dia anterior chegou uma informação pra gente que ‘já estava tudo muito bem pago e que era para eu tomar cuidado de quem eu cobrava’, uma humilhação”, recorda.
Passando por dificuldades financeiras, com dois filhos pequenos, inclusive um deles doente, e a esposa para sustentar, Jonas se viu frustrado diante da situação. “Eu dediquei muito esforço físico, intelectual, emocional e o retorno financeiro não vinha. A situação era precária, lidava com resinas tóxicas, acidentei e quase perdi um dedo. Entre a escultura, a vida comum e outros trabalhos, eu tinha que correr atrás de ‘empresários’ que eles me pediam pra buscar pagamento”, narra.
Foi então que o escultor decidiu adicionar um "toque especial" à obra. Por volta das 5h, do dia 5 de julho, Jonas pegou uma escada e uma lata de tinta, foi de carro até o Fórum e despejou o líquido sobre a deusa da justiça. Quando a cidade acordou, a notícia logo se espalhou. Quem passava em frente ao Fórum via Themis coberta da cabeça aos pés de tinta preta. Logo chegaram dezenas de jornalistas e curiosos para tentar ver o inusitado. Jonas foi preso horas depois. O protesto do artista emplacou em todos os jornais impressos e TV’s da época.
A prisão
No boletim de ocorrência a natureza foi registrada como “dano” e a vítima “patrimônio público”. No auto de prisão em flagrante é dito que Jonas foi preso às 11h, pois “danificou uma escultura pintado-a de preto quando sua cor original era uma cor clara”, diz trecho. A fiança foi fixada no valor de R$ 50, pago com ajuda de amigos.
Deste dia em diante, iniciava uma nova saga. Dessa vez processado por danificar a própria obra. O artista alega que, como o valor integral não havia sido pago, a escultura ainda pertencia a ele, portanto, podia fazer modificações que julgasse necessárias.
Apesar da tinta ser removível com uso de alguns produtos, o processo precisava ser feito pelo artista, já que só ele poderia reconstituí-la de acordo com a Lei dos Direitos Autorais. Sem o pagamento, não desfez as marcas de sua revolta e a escultura permaneceu meses manchada.
Na época, o delegado Hamilton Camargo abriu inquérito policial contra Jonas por danos ao patrimônio. O caso teve repercussão nacional e foi publicado tanto no dia do fato quanto nos desdobramentos, como mostra reportagem da Folha de S. Paulo, de 12 de setembro de 1995, assinada pela jornalista Myrian Violeta.
“A Delegacia Metropolitana de Cuiabá (MT) envia nesta semana ao Juizado Especial Criminal de Pequenas Causas inquérito policial que aponta o escultor Jonas de Lima Correa Neto como autor de atos de vandalismo e depredação do patrimônio público. Ele deverá ser submetido a processo judicial e poderá ser condenado a até 6 anos de prisão”, diz trecho.
Ainda para a reportagem da Folha, o ex-presidente do Fórum, Aparecido Chagas, disse que rejeitou o preço pedido pelo escultor para realizar a obra por considerá-lo muito alto. "Achei um absurdo e dispensei o trabalho", conta Chagas. Ele diz que a obra só foi contratada depois que deixou a presidência. 'Não fechei nenhum acordo", diz José Tadeu Cury, que substituiu Chagas. Chagas e Cury dizem que nada devem ao escultor e que a obra foi doação de empresários”, cita.
"Eu fechei o acordo. A escultura custaria 8.000 e ele faria mais 10 miniaturas da Themis por 2.000", disse o empresário Eduardo Jacob, que se intitula líder do grupo que fez a doação. Segundo ele, Correa Neto não recebeu os 2.000 que faltam porque não entregou as miniaturas”, diz outro trecho.
No entanto, as miniaturas, de fato, foram feitas, como mostram reportagens publicadas na época. Diante do ocorrido, em dezembro de 95 Jonas doou as criações para o Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade, durante homenagem simbólica ao Dia da Justiça. Receberam as esculturas representantes do Movimento Sem Terra, deficientes físicos e familiares vítimas de assassinatos brutais, como o jovem Mauro Solano, entre outros.
O processo
Não demorou muito para o processo judicial começar a correr. A complexidade do caso aumentava à medida que Jonas argumentava que não depredou patrimônio alheio ou público, já que a escultura ainda lhe pertencia, por não ter sido paga integralmente, além de não haver documentação que mostrasse que pertencia ao Fórum.
Anexo ao processo está laudo pericial feito em 6 de julho de 1995, pela coordenadoria de criminalística da Delegacia Metropolitana de Polícia Judiciária Civil. “Ao periciar a estátua, o perito observou nenhum tipo de contusão na mesma e informa que não sofrera nenhum tipo de agressão por instrumento contundente, ou perfuro cortante. [...] Possivelmente a substância não possuía função nem ácida nem básica. Por não ter corroído a escultura, a mesma não fora comprometida”, concluiu.
No memorial final, feito em 20 de maio de 1997 pelo advogado de Jonas, na época o então presidente da Comissão De Direitos Humanos da OAB-MT, Walmir Cavalheri de Oliveira, é pedida a absolvição do escultor e são apontadas contradições na suposta aquisição da obra.
“Está claro que o crime ocorre somente quando o dano pode ocorrer a coisa alheia. No presente caso, supõe-se que a estátua é bem público, pertencente ao Judiciário. Entretanto, sabemos que para um bem ser incorporado ao patrimônio do Estado tem obrigatoriamente que acompanhar nota fiscal, aim de que se proceda o registro de acervo. Verificamos no departamento de patrimônio do TJMT e não encontramos registro da estátua da Deusa Themis, assim a estátua ainda é propriedade de seu criador, acusado por um crime que não existe”.
Em 9 de setembro de 1998 o processo foi arquivado por prescrição do delito.
Atualmente
Anos mais tarde, a escultura da Justiça foi retirada do local, pintada de cinza por outro artista e transferida para a nova sede do Fórum de Cuiabá no Centro Político Administrativo. Hoje ela se encontra dentro do prédio e não mais em local acessível ao público em geral.
30 anos depois, questionado pela reportagem do se deixou de confiar na Justiça, o escultor nega prontamente e justifica sua visão. “Eu não fiquei desacreditado, pois entendo que a Justiça não tem dono. Quando coisas assim ocorrem é porque ela foi usurpada e é preciso identificar o usurpador. Eu tive a arte a meu favor, mas nem todos têm, mesmo assim nunca deixei de acreditar. A Justiça sempre vai prevalecer, não sabemos quando nem como. O que eu espero dos magistrados é que cumpram o papel deles, que honrem o juramento deles, espero que façam a função e o propósito deles”, declara.
Pollyana espera que com o documentário a história não seja apagada e que o mesmo não aconteça com outras pessoas. “Antes eu só ouvia a história pelo meu pai, agora eu conheci muitos personagens que viveram ela. Quando a gente busca no Google notícias desse ato do dia 5 de julho, não temos nem dois links que dão acesso a isso, então a gente quis documentar para que a história não se perca e mais pessoas tenham acesso. É importante para que não se repita, ainda mais hoje”, reflete.
Outro lado
O ex-presidente do fórum e desembargador José Tadeu Cury, faleceu em 13 de julho de 2016, aos 71 anos, em decorrência de uma infecção generalizada. Ele lutava contra um câncer. Foi promovido ao cargo de desembargador em 19 de setembro de 1994. Foi presidente da Comissão Estadual Judiciária de Adoção no biênio de 2001/2002. Além disso, presidiu o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) em 1998 e foi vice-presidente no ano de 1997. Entre 2001 e 2003 foi corregedor do TJMT.
Durante a magistratura, Tadeu Cury teve o nome envolvido na Operação Asafe, deflagrada pela Polícia Federal, em 2010, que investigou esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça e no Tribunal Regional Eleitoral (TRE). À época, 6 advogados e um empresário ligados ao desembargador foram presos. Ele inclusive foi levado para prestar esclarecimento, junto com outros juristas e magistrados. Apesar do envolvimento de pessoas ligadas a Cury, ele não foi denunciado porque as ações que teriam sido negociadas eram da Câmara Criminal e o desembargador atuava na Cível.
Já o juiz aposentado Aparecido Chagas faleceu em 14 de março de 2020, aos 69 anos, ao sofrer um infarto fulminante em sua residência. Em maio de 2005, o Pleno do Tribunal de Justiça decidiu, por 17 a 3, punir Chagas com aposentadoria compulsória. O magistrado respondia a processo administrativo disciplinar por desvio de conduta funcional e estava afastado da 9ª Vara Cível de Cuiabá 18 meses antes. Na sessão que julgou o processo contra Chagas, participaram 20 desembargadores. Destes, 3 votaram contra a punição, incluindo o desembargador José Tadeu Cury.
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