CORPO ESTAVA NO PARAGUAI 28.09.2025 | 10h00
mariana.lenz@gazetadigital.com.br
EDSON RODRIGUES
No mesmo dia em que o Brasil comemorava sua independência, em 7 de setembro de 1999, o corpo do juiz mato-grossense Leopoldino Marques do Amaral, 55, era encontrado com marcas de tiros na cabeça e parcialmente carbonizado, em uma estrada vicinal, na cidade de Concepción, no Paraguai. Semanas antes, o magistrado havia levado à CPI do Judiciário, no Senado, em Brasília, uma série de denúncias de venda de sentenças, assédio sexual, nepotismo, fraude de concurso público, aposentadorias irregulares e até narcotráfico, contra juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT).
Hoje, 26 anos depois, ao , um dos filhos do juiz, Leopoldo Augusto Gatass do Amaral, conta como a família foi duramente impactada e teve sua rotina drasticamente interrompida por conta da morte trágica. Perseguições, ameaças, rejeição em vagas de emprego, mudanças constantes de casa, cidade, país e até mesmo uma residência metralhada foram algumas das situações que os órfãos do magistrado sofreram ao longo dos anos.
Filho do meio de 8 irmãos da primeira esposa do juiz, Leopoldo narra que soube da morte do pai por telefonema. “Eu estava em casa, tinha chegado do serviço e o cônsul do Paraguai me ligou e disse que meu pai tinha sofrido um acidente e precisava de um doador de sangue urgente e disse para eu ir para Concepción. Fui de avião, com outras autoridades, mas chegando lá vi que o movimento era outro, cheguei a ver ele na vala”, relembra.
Leopoldo diz que lembra da cena como se fosse ontem. No local foi feita a primeira perícia e posteriormente o corpo trazido ao Brasil de avião, para dar sequência aos procedimentos no Instituto Médico Legal. O velório ocorreu na Academia Mato-grossense de Letras (AML), na capital, onde diversas autoridades marcaram presença.
O caso tomou proporção nacional e chegou a ser noticiado em grandes telejornais em diversos estados. O corpo foi transladado e sepultado na terra natal do juíz, em Poconé, onde está seu jazigo até hoje. Contudo, mesmo após a morte, o calvário da família continuou.
Ameaças, retaliação e exumações
Os dias, semanas, meses que sucederam o enterro do pai não foram fáceis. “Me chamaram para doar sangue, eu chego lá e ele está morto? Eu tive que criar forças de onde não tinha. Minha vida virou de cabeça pra baixo, tive que recomeçar do nada. Muita coisa a ser explicada 'acabou em pizza', como costumam dizer”, diz Leopoldo.
Certa noite, enquanto dormia em casa com esposa e filhos, após mudar de residência, teve o imóvel metralhado na madrugada. Acionou a polícia e foi resgatado. Desde então a rotina mudou, literalmente, da noite para o dia.
“Fiquei sob escolta armada 24 horas com dois policiais junto. Perdi o emprego por isso, as metralhadoras amedrontavam as pessoas. Eu pensava que qualquer um poderia ser um inimigo. Passei um tempo em uma fazenda escondido com minha família. Foram dias sem dormir vigiando meus filhos, minha esposa, no meio do nada, no mato, tentando confiar nos seguranças, noites em claro”, desabafa.
Além de Leopoldo, outros irmãos que preferiram não registrar seus nomes na reportagem, narram ao que também perderam empregos, mudaram diversas vezes de cidade e hoje, parte deles vive no exterior por segurança.
Uma das filhas de Leopoldino conta que o pai, um mês antes de ser morto, confidenciou que estava sendo perseguido, mas que não pediria segurança, pois achava que nada aconteceria. Contudo, passou a mudar de postura. “Meu aniversário é em agosto e ele me convidou para vê-lo naquele ano de 1999. No entanto, por estar sendo vigiado não se sabe por quem, só me ligou e cumprimentou. Ele disse ‘filha, seja forte, nada farão comigo, pois se fizerem terão que pagar”, conta.
Hoje, fora do Brasil, a filha confidencia que chegou a seu conhecimento que foi investigada internacionalmente, pois acreditavam que Leopoldino estava vivo e morando com ela.
Exumação de traumas
Após anos escondido no meio rural, Leopoldo resolveu retornar à capital. No entanto, se viu abalado novamente por uma 'teoria da conspiração' que ganhou força.
A tese de que o juiz estaria vivo e sua morte foi forjada para fugir com dinheiro das contas de processos da Vara de Família chegou a tal ponto, que uma exumação de seu cadáver foi feita, contra a vontade da família.
Uma segunda exumação iria ser feita, mas a Justiça Federal interveio. Assim que o Ministério Público Federal (MPF) soube da nova exumação, autorizada pela 15ª Vara Criminal de Cuiabá, foi imposta a suspensão dos trabalhos e a devolução imediata dos restos mortais, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
A filha conta que nunca foram pagas reparações aos danos feitos no jazigo e a família sempre teve de arcar com as manutenções diante dos prejuízos causados.
Memorial nunca concluído
O artista plástico Jonas Corrêa cita que conheceu Leopoldino ainda em vida, após enfrentar problemas por sua intervenção artística na estátua da Justiça em 1995, quando jogou tinta no monumento que não foi totalmente pago após ser entregue ao Fórum da capital. (Confira aqui).
O juiz, que admirava as esculturas de Jonas que continham críticas sociais e ao judiciário, planejava encomendar obras. Porém, meses depois foi morto. Posteriormente, Jonas foi contatado pela segunda esposa de Leopoldo para fazer um memorial no túmulo. A ideia era preservar a memória do magistrado, que morreu em busca de Justiça.
“Saímos de Cuiabá para Poconé sob forte escolta armada. Chegamos no cemitério e os seguranças ficaram vigiando. Ela me mostrou o local e eu fiquei analisando, pensando no esboço. De lá fomos embora, apresentei a proposta e ela aprovou. Deu uma entrada para eu começar. A escultura já estava quase pronta e um dia ela me ligou e disse que teria de declinar do projeto e desligou, durou 30 segundos a ligação. [...] Foi frustrante a escultura não ter sido instalada”, menciona.
A modelagem da peça chegou a ser noticiada a nível nacional e foi publicada em jornais e revistas de várias partes do país. De origem indígena, Leopoldino passou a ser chamado de “Galdino de toga”, em alusão ao cacique Galdino Jesus dos Santos, líder da etnia pataxó-hã-hã-hãe que foi a Brasília tratar da demarcação de terras e morreu carbonizado após 5 jovens da alta sociedade atearem fogo nele enquanto dormia num ponto de ônibus, sob a justificativa de que “acharam que fosse só um mendigo”.
Hoje a escultura está instalada no Shopping 3 Américas, no bairro Jardim das Américas, na capital. Jonas projetou e modelou um indígena em posição semelhante à obra ‘O Pensador’, do escultor francês Auguste Rodin.
Vida e trajetória
Poconeano de nascença, antes de entrar na magistratura, Leopoldino Marques do Amaral estudou, se tornou padre e chegou a celebrar missas. Porém, abandonou a batina. Foi professor, lecionando em Campo Grande. De volta a Cuiabá, entrou no curso de direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde se formou. Advogou por alguns anos e passou em concurso para juiz, assumindo a Comarca de Barra do Bugres.
De volta à capital, seus trabalhos mais marcantes se deram quando era titular da Vara da Família e substituto na Vara da Infância. Com postura conhecida pela firmeza e posicionamentos combativos ao que considerava injusto, se envolveu em várias polêmicas.
Dentre elas dois casos em que atuou se destacaram: quando expediu mandado de prisão contra uma freira de uma escola que não permitiu a matrícula de uma criança portadora de HIV e quando autorizou transfusão de sangue a uma criança filha de pais testemunhas de Jeová.
Entre 1989 a 1990 foi presidente da Associação Mato-grossense de Magistrados (AMAM) e desde então seguia com o objetivo de se tornar desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT). Foi inclusive na década de 90 que pela primeira vez se candidatou a vaga na Corte. Mesmo sob o critério de antiguidade, não foi selecionado.
A morte
Em 1999, Leopoldino era juiz no fórum de Cuiabá e denunciou na mídia e para autoridades um esquema de venda de sentenças envolvendo juízes e desembargadores do Judiciário mato-grossense. O empresário Josino Guimarães foi apontado como o 'lobista' intermediador no comércio das decisões. Além disso, ele acusou os colegas de Tribunal de nepotismo e envolvimento com traficantes.
O caso ganhou repercussão nacional e Leopoldino foi convocado a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Judiciário, no Senado, que investigou denúncias de irregularidades em todo o país. Já na primeira semana de setembro daquele ano, foi dado como desaparecido por alguns dias. Seu corpo foi encontrado com tiros na cabeça e parcialmente queimado, em uma estrada, perto de Concepción, no Paraguai.
As investigações da Polícia Federal apontaram Josino Guimarães como mandante do crime; a ex-escrevente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e ex-servidora de gabinete de Leopoldino, Beatriz Árias, como co-autora do crime; e o tio dela, Marcos Peralta, como autor do assassinato.
Beatriz foi condenada a 12 anos, em 2001. Depois de cumprir parte da pena, deixou o presídio. O tio dela, Marcos, apontado como autor dos disparos, morreu na prisão, de diabetes, em 2005. A ex-servidora negou o crime e sustentou que o corpo localizado não era do juiz. Afirmava que ele estava vivo e morando no exterior. Devido a essa informação as exumações foram determinadas.
O delegado responsável pelo caso, Márcio Pieroni, foi preso em 2011 e condenado a 15 anos por tumultuar a investigação. Ele foi exonerado do cargo por alegar que o juiz estaria vivo, compactuando com a versão de Beatriz.
Josino enfrentou júri popular por duas vezes. Uma em 2011 e outra em 2022. No primeiro julgamento a maioria dos jurados reconheceu que Josino foi o mandante do crime, no entanto, o júri decidiu que ele não deveria ser condenado, sendo absolvido. Na segunda vez também foi inocentado.
Em 2003, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) arquivou a representação com as denúncias feitas pelo juiz Leopoldino Marques do Amaral contra os desembargadores.
Hoje
Questionado pelo sobre como vê o passado, após 26 anos e quais perspectivas tem hoje, Leopoldo diz que o pai sempre quis acreditar em um mundo melhor e tinha fé nas instituições, apesar de reconhecer que “em todo lugar haviam ‘maçãs podres’, mas não todas”.
“Alguém tem que acreditar que tudo pode mudar, se todo mundo se acovardar só preenchemos espaço nesse mundo material sem dignidade de viver. Se as pessoas não tiverem coragem, vai continuar isso”, opina.
Publicidade
Publicidade
Milho Disponível
R$ 66,90
0,75%
Algodão
R$ 164,95
1,41%
Boi à vista
R$ 285,25
0,14%
Soja Disponível
R$ 153,20
1,06%
Publicidade
Publicidade
O Grupo Gazeta reúne veículos de comunicação em Mato Grosso. Foi fundado em 1990 com o lançamento de A Gazeta, jornal de maior circulação e influência no Estado. Integram o Grupo as emissoras Gazeta FM, FM Alta Floresta, FM Barra do Garças, FM Poxoréu, Cultura FM, Vila Real FM, TV Vila Real 10.1, TV Pantanal 22.1, o Instituto de Pesquisa Gazeta Dados e o Portal Gazeta Digital.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem a devida citação da fonte.